Conservavam a tradição de uma longa conversa por ano. Geralmente era a única que tinham. Na verdade ela tinha a tradição de ligar na noite do aniversário dele, não importando onde estavam, se ele tinha ligado no dela, se algum dos dois estava namorando. Ele sempre estava. Ela nunca.
Ela sempre tinha medo de que neste ano não tivessem assunto. Sempre pensava que “nossa, esse ano tanta coisa mudou, acho que não vamos mais ter do que falar... acho que o vínculo se perdeu”. Todo ano ela ficava se enrolando até o fim da noite em receio, às vezes alguma preguiça, algum aperto no estômago. Toda vez sentia um misto de medo e vontade que ele não atendesse.
Ele sempre atendia. O aniversário não era completo se ela não ligasse, e apesar de não ter direito a cobranças, ele sempre passava o dia esperando e se preparando pra ligação anual dela. Sempre se livrava de quem estivesse por perto, sempre se deitava no quarto, ou se sentava na calçada vazia, ou se apoiava na janela da sala. Sempre sozinho.
- Eu vi o DDD e sabia que era você. – ele sempre dizia.
- Claro, você conhece mais alguém que more aqui?
- Pensei que você não fosse ligar, depois que...
- Que você não ligou no meu? Eu sou superior a isso.
Ele sorria. Ela era mesmo, sempre.
- Mas você sabe que eu lembrei né? Você sabe que é impossível não lembrar, não sabe?
- É?
- Claro que é. O seu dia é.... o seu dia.
Ela sempre tinha medo de que dessa vez ele soltasse: “então... eu vou me casar”, ou “dessa vez é sério”, ou algo do gênero. E embora ele tenha dito coisas parecidas, algumas vezes, ela soube, em cada uma delas, que era só ele sendo aquele eterno apaixonado e sempre incapaz de ficar sozinho, mas que ia passar. Mas ainda assim, ela sempre temia que dessa vez, entre namoricos e traições constantes, entre reclamações e frustrações padrões, ele decidisse que a menininha da vez era a escolhida, ou que já era hora.
- Eu vi o DDD e sabia que era você. – ele sempre dizia.
- Claro, você conhece mais alguém que more aqui?
- Pensei que você não fosse ligar, depois que...
- Que você não ligou no meu? Eu sou superior a isso.
Ele sorria. Ela era mesmo, sempre.
- Mas você sabe que eu lembrei né? Você sabe que é impossível não lembrar, não sabe?
- É?
- Claro que é. O seu dia é.... o seu dia.
Ela sempre tinha medo de que dessa vez ele soltasse: “então... eu vou me casar”, ou “dessa vez é sério”, ou algo do gênero. E embora ele tenha dito coisas parecidas, algumas vezes, ela soube, em cada uma delas, que era só ele sendo aquele eterno apaixonado e sempre incapaz de ficar sozinho, mas que ia passar. Mas ainda assim, ela sempre temia que dessa vez, entre namoricos e traições constantes, entre reclamações e frustrações padrões, ele decidisse que a menininha da vez era a escolhida, ou que já era hora.
Ele tinha medo que ela dissesse simplesmente: “tô namorando”. Em todos os anos, essa era a pergunta que ele nunca fazia. Sim, porque ele ainda poderia ter um zilhão de namoradinhas e casinhos antes de “se fixar”, mas ela não. Ela era madura e dedicada demais, e auto-suficiente demais pra ter relacionamentos casuais e sem importância. Ela não precisava. Ela era mulher e forte demais, e já o era aos 15 anos, de modo que ele só podia imaginar o que teria se tornado em oito anos de estudo, independência, desestrutura familiar, capitais, vida no exterior. Ele sabia que uma vez que ela contasse que tinha alguém, era questão de tempo até que ele o convite do casamento chegasse pelo correio. As amigas dela costumavam dizer o mesmo. Ele sabia que era uma questão de tempo antes que um cara qualquer, bom ou mau, mas nunca bom o suficiente, percebesse a raridade que ela era, passasse por cima do medo de ter uma mulher tão grande, e a roubasse pra si. E ele sabia que ela já se achava um pouco velha, que ela já devia procurar, de verdade, alguém pra vida toda. Não como toda menina adolescente sonha, mas como toda mulher busca. Ele sabia, tinha certeza, que o dia se aproximava. E não podia deixar de temer.
De todo modo, ela nunca deixara de ligar, e eles nunca ficaram sem assunto. Em todos os anos, em qualquer lugar, por mais que pudessem ter pensado, questionado ou duvidado, no primeiro minuto era como se nunca tivesse existido distância. Ele estranhava e ria um pouco do sotaque dela, que logo se mesclava ao dele, ela estranhava um pouco a voz, que a princípio parecia um pouco mais grossa, mas em alguns segundos, antes que ela pudesse começar a se preocupar com os danos do cigarro às cordas vocais dele, voltava a ser a mesma de sempre. Ele falava de pessoas do passado que ela demorava um pouco pra identificar, ela se lembrava subitamente de coisas muito antigas e ele acrescentava detalhes como se tudo tivesse acontecido a duas semanas. Ela pegava um papel pra anotar os filmes que ele tinha pra indicar, ele tentava decorar os livros que ela afirmava com toda certeza: “desse você vai gostar, prometo”. E riam dos outros e de si mesmos, e falavam do quanto a vida fora simples naqueles dias, tempos atrás, e do quanto não tinham preocupações e deveres, de como tinham sido felizes e mal sabiam. Ele falava por algum tempo, a cada ano, de como a família dela tinha sido importante. De como ele nunca mais se sentira tão confortável com uma sogra, uma cunhada, um cachorro. Ela sorria, sabendo que não tinha com quem compará-lo. Nestes momentos, e só nestes, a constatação vinha sem a dor.
Ela aprendera a ser sozinha, ele aprendera a não ser. Ela sempre perguntava se ele não tinha medo de não saber ficar de pé sozinho, de não conseguir caminhar com suas pernas sem muletas. Ela aprendera a associar relacionamentos a muletas. Ele respondia que só fica sozinho quem quer, ela não conseguia imaginar de onde ele tinha tirado aquela idéia. Uma vez ele até falou das barreiras que as pessoas criam pra não se envolverem, mas parou logo. Tinha medo que ela aprendesse e se livrasse da sua. E deixasse alguém entrar. E esquecesse.
Todo ano eles se despediam prometendo se falarem mais, se escreverem, se encontrarem. Sabendo que era tudo mentira. E se despediam prometendo que não se esqueceriam, não se apagariam, não se perderiam. Sabendo que era tudo verdade.
De todo modo, ela nunca deixara de ligar, e eles nunca ficaram sem assunto. Em todos os anos, em qualquer lugar, por mais que pudessem ter pensado, questionado ou duvidado, no primeiro minuto era como se nunca tivesse existido distância. Ele estranhava e ria um pouco do sotaque dela, que logo se mesclava ao dele, ela estranhava um pouco a voz, que a princípio parecia um pouco mais grossa, mas em alguns segundos, antes que ela pudesse começar a se preocupar com os danos do cigarro às cordas vocais dele, voltava a ser a mesma de sempre. Ele falava de pessoas do passado que ela demorava um pouco pra identificar, ela se lembrava subitamente de coisas muito antigas e ele acrescentava detalhes como se tudo tivesse acontecido a duas semanas. Ela pegava um papel pra anotar os filmes que ele tinha pra indicar, ele tentava decorar os livros que ela afirmava com toda certeza: “desse você vai gostar, prometo”. E riam dos outros e de si mesmos, e falavam do quanto a vida fora simples naqueles dias, tempos atrás, e do quanto não tinham preocupações e deveres, de como tinham sido felizes e mal sabiam. Ele falava por algum tempo, a cada ano, de como a família dela tinha sido importante. De como ele nunca mais se sentira tão confortável com uma sogra, uma cunhada, um cachorro. Ela sorria, sabendo que não tinha com quem compará-lo. Nestes momentos, e só nestes, a constatação vinha sem a dor.
Ela aprendera a ser sozinha, ele aprendera a não ser. Ela sempre perguntava se ele não tinha medo de não saber ficar de pé sozinho, de não conseguir caminhar com suas pernas sem muletas. Ela aprendera a associar relacionamentos a muletas. Ele respondia que só fica sozinho quem quer, ela não conseguia imaginar de onde ele tinha tirado aquela idéia. Uma vez ele até falou das barreiras que as pessoas criam pra não se envolverem, mas parou logo. Tinha medo que ela aprendesse e se livrasse da sua. E deixasse alguém entrar. E esquecesse.
Todo ano eles se despediam prometendo se falarem mais, se escreverem, se encontrarem. Sabendo que era tudo mentira. E se despediam prometendo que não se esqueceriam, não se apagariam, não se perderiam. Sabendo que era tudo verdade.